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O Jogo dos Papeletes Coloridos - multimídia

O Jogo dos Papeletes Coloridos, de Paulo Santoro, é um ebook multimída com artes, vídeo e músicas do autorintegrados ao texto, traz quatro histórias simultâneas, levadas a um surpreendente desfecho. 
Como pano de fundo, traz a disputa de dois líderes pela direção global da humanidade em um futuro indistinto, num mundo sem violência, mas arruinado pela devastação ambiental. De personalidades opostas, os personagens embatem-se intelectualmente com fúria e maestria, sem saber que foram motivados a esses papéis durante a juventude, quando expostos a um jogo do qual desconhecem o significado.

The O Jogo dos Papeletes Coloridos (The Colored Papers Game - discover in another section the english version) - by Paulo Santoro, is a multimedia ebook with art, video and music by the author integrated into the text, brings four simultaneous stories, led to a surprising outcome. 
As a backdrop, it features the dispute between two leaders for the global direction of humanity in an indistinct future, in a world without violence, but ruined by environmental devastation. With opposing personalities, the characters clash intellectually with fury and mastery, without knowing that they were motivated to these roles during their youth, when exposed to a game of which they are unaware of the meaning.
Assista ao booktrailer acima, aproveite as artes incluídas e leia abaixo o primeiro capítulo completo deste inovador e-book multimídia:
O Jogo dos Papeletes Coloridos​​​​​​​
Vésperas
Virtuosa
No parque
Relógios
Noturno
Decisão
Cardealis
Último encontro

Vésperas

UM não via a hora de botar aquela gente toda para fora. Eram seus assessores dedicadíssimos, escolhidos entre os melhores de seus seguidores, mas precisava manter um resquício de controle e disciplina. Precisava reservar um tempo, por curto que fosse, para descansar, estar em condições mínimas adequadas de atenção e presteza de espírito para o confronto de amanhã, longamente esperado, a batalha final, o embate derradeiro, espaço reservado para apenas um vencedor.
Era hora de exercer sua liderança incontestável de maneira um pouco mais explícita. Levantou-se de repente, derrubando lápis e calhamaços de papel — era fácil, havia pilhas por todo o lugar:
— Está bem pessoal, agora chega, todos precisamos descansar — disse UM, movendo os braços para a frente, como que enxotando pombas numa praça. — O que não resolvemos até hoje, não será agora que vai acontecer!
E foi pegando pastas, bolsas de uma, paletó e papéis de outro, ajudando e induzindo à debandada porta afora. Queria estar sozinho em sua suíte, mergulhar em sua cama e dar-se a chance de relaxar um pouco. Se haviam conseguido sustar a crescente tensão política e social do mundo lá fora, o vulcão revolvente sempre prestes a explodir, tinha perfeita ciência que era por um tempo limitado, limitadíssimo, e esse tempo terminaria amanhã, ele o sabia. E sabia também que DOIS tinha a mesma percepção. Pensou e sorriu por um momento — ele deveria estar provavelmente tentando, da mesma forma, botar o pessoal dele para fora de seu escritório.
Vai quase que empurrando os últimos auxiliares, a última delas, ocupada da confecção e checagem da correção e publicação de todos os gráficos produzidos antes de sua divulgação externa, ainda volta, recolhe casaco e qualquer coisa mais da poltroninha padrão do hotel, embaixo da janela lateral e, pronto, conseguiu, foram todos para seus quartos. Estava livre.
Sua agenda era muito cheia, tanto quanto o contexto que vivia: estava às vésperas de um momento de decisão importante, em uma situação geral política grave, as expectativas de todos chegando a um nível dramático e ele, ele próprio, chegando ao ápice de sua carreira. Carregava agora o cansaço de anos de disputas, rivalidades, convencimentos e discussões em incontáveis assembléias, embates, entrevistas, diálogos, palestras, dissertações, provocações...
E agora chegara a hora, a proposição final e a consequente votação seria amanhã; todas as pessoas — literalmente todas — esperavam por isso. Estava preparado.
Tranca a porta, finalmente sozinho. Precisa descansar, sente agora o corpo pesado. Vira-se para retornar ao quarto, passa pela cadeira ao lado da janela, na antessala da suíte, onde segundos atrás sua assessora resgatara sua bolsa e casaco. Que faz aquele homem sentado agora lá?
Sério e compenetrado, folheava uma pequena caderneta preta, que parecia de couro, até estacionar em uma determinada página. Apesar da distância, UM viu com clareza seu próprio nome completo, o nome de batismo que continha todos os seus outros nomes intermediários, há muito abandonados, à guisa de rapidez de comunicação e economia de espaço. Em seguida, ao lado, a data de seu nascimento. Ora, esses eram dados públicos, sempre apresentados em seus currículos nos centros de comunicação de massa, todos sabiam disso, pois ele era uma figura pública de alta relevância e interesse.
Parece ele familiar? A fisionomia parece já ter sido vista muitas vezes, em lugares diversos, mas não é conhecida, nunca foi apresentado... De toda forma, como entrou ali?
O corpo pesado, a premência de descansar para a batalha do dia seguinte e agora, ter ainda de lidar com isso...
Ao lado do nome e data de nascimento, UM viu também o horário de seu nascimento. Bem, essa já era uma informação incomum, rara, muito rara — como a conseguira? E quem saberia? Sua mãe, pai, uma tia, além dele próprio, no máximo, e ele, como resultado da universal e insaciável curiosidade infantil de saber, perguntar e re-perguntar um milhão de detalhes. Como estava ali agora, naquela caderneta?
 Essa surpresa de UM foi maior do que a outra, a do fato de ter podido ler tal detalhe a essa distância, naquela pequena e velha caderneta de bolso. Aliás, muito velha, deveria ter muitos anos. Mais de mil anos. Na verdade pareceu a UM ter milhares de anos. Volta o corpo cansado a reclamar, precisando repousar. Começa a pesar uma tonelada...
O homem, sereno, toma do bolso um lápis azul. Estranho, diante da situação insólita dos dois fechados naquela suíte, UM ter parado longamente, fitando aquele lápis comum, sextavado, sem inscrição na lateral, de ponta cuidadosamente apontada, cortada como em tempos muito antigos, com uma faca ou canivete, deixando cortes irregulares, que se dirigiam do corpo longilíneo do lápis em direção à ponta, num feixe dirigido de cortes esculturais mínimos.
Surpreendeu-se com sua própria atenção a detalhes tão exuberantes, nas ricas formas curvas que aqueles cortes sugeriam — quanto tempo de contemplação, naquela situação constrangedora, frente a um desconhecido, teria ficado? Três, quatro segundos? Um minuto?
Sentia que perdia a noção clara da passagem do tempo, creditando tal ilusão sensitiva ao cansaço das quase 48 horas de trabalho ininterrupto com sua equipe, revendo cada detalhe de sua proposta, escolhendo cada palavra, cada construção de frase, tentando antever cada questionamento e preparar a contra resposta infalível, avassaladora, para somar o maior número de assertivas contundentes naquela que seria, já no dia seguinte, a contenda máxima de sua vida, para a qual se preparara tanto — e a do futuro de seus seguidores, seus amigos, de todo seu povo.
O senhor ia ter de lhe desculpar, mas francamente, agora chegava de entrevistas, confirmação de dados, datas, taxas, tarifas, rotas, prazos, cursos, sequências e evoluções, estratégias e metas, estruturas e hierarquias, direcionamentos e adesões. Aliás, precisaria cobrar maior atenção de sua assessoria para evitar um repórter “entrão”, de última — ultimíssima — hora. Precisava, definitivamente precisava, precisava mesmo descansar, o corpo pesando como nunca pesara, vergado à ansiedade, tensão, exaustão, dos últimos monumentais dias.
... ora, será que alguém da equipe — suprema traição — tinha a ele facilitado a entrada? Pensando nisso, entrada por onde?

Duas toneladas...

O homem, ainda sereno, impassível como se a situação ali fosse normal, corriqueira, como se todos os dias estranhos dividissem espaço tão exíguo, sem que pudesse haver perturbação, incômodo, inconveniência, o homem se prepara agora para uma primeira anotação. Decidido a nem permitir sequer um início de tratativa, UM se dirige a ele, vencendo a pequena distância que os separa, ou melhor, média distância... na verdade... estão tão perto e tão longe...
Enquanto caminhava, lembrou-se de sensação semelhante, essa, de ilusão de distância, muitos anos atrás no parque, da primeira vez que reviu uma sua distante paixão infantil, agora mulher feita e que se tornaria sua esposa. Não sabia por que havia se lembrado desse detalhe nessa hora, talvez quisesse se lembrar de sua mulher, nessa hora indevida, e porque não?

(Assista abaixo ao vídeo->   Virtuosa)​​​​​​​
Dividindo a distração com sua lembrança, UM viu nitidamente, com clareza telescópica, detalhes da borda da pequena folha revirada, gasta, meio rota, fruto de manuseios constantes. O homem começara a escrever.
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O Jogo dos Papeletes Coloridos - multimídia
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